Educação Integral e a descolonização dos currículos locais

 


O debate contemporâneo sobre a Educação Integral transpassa escalas locais e globais, reivindicando mudanças paradigmáticas na condução das políticas públicas educacionais. A Educação Integral em discussão não se define como uma etapa ou modalidade específica das relações de ensino-aprendizagem, trata-se de uma concepção que busca ultrapassar as segregações sociais e epistêmicas entre processos educacionais escolares e não escolares. No mundo em que vivemos esse debate conceitual circula em contextos marcados pelos embates das versões coloniais e contra coloniais dos currículos escolares vigentes.

Não podemos ignorar o fato da Educação Integral predominar como artefato discursivo das agendas do colonialismo global em que as Nações do Norte ainda impõe regras e modelos a serem seguidos pelo Sul do mundo. A repetição do “padrão finlandês” como exemplo a ser reproduzido se tornou lugar comum do colonialismo global na organização curricular das escolas em nível planetário. Não podemos ignorar, também, o fato da Educação Integral figurar como enunciado privilegiado das agendas do colonialismo interno, que orientam e regulam as configurações curriculares locais. No caso de Santa Cruz Cabrália, as “retóricas do descobrimento” ainda predominam na construção territorial das identidades curriculares das escolas locais. Inscrever a crítica do colonialismo nos debates com a Educação Integral supõe concebê-la, também, como um processo de descolonização dos currículos locais.

A descolonização dos currículos locais por meio da Educação Integral exige rupturas com os ciclos de reprodução verticalizada dos modos de organização, produção e distribuição do conhecimento nas escolas. Exige ainda tomar como questão aquilo que se afirma como verdade única no interior dos currículos escolares. Partindo do contexto de Santa Cruz Cabrália podemos propor a descolonização curricular como atitude situada nos movimentos locais pela Educação Integral.

No nosso contexto municipal aprendemos com as populações indígenas que antes da chegada dos colonizadores já havia uma educação em que o ritmo da vida comunitária seguia o ritmo da natureza envolvente. Ignorar ancestralidades afro-pindorâmicas - para usar a bela expressão de Nego Bispo - da Educação Integral supõe uma atitude colonial de apagamento de tradições educacionais em que a vida humana não se dissocia da vida de outros seres e forças da natureza. A partir de Santa Cruz Cabrália, ler as importantes referências históricas do debate brasileiro recente sobre a Educação Integral nos faz indagar sobre as ausências de experiências indígenas, quilombolas e campesinas nos discursos oficiais sobre o tema.

Outra armadilha colonial presente no discurso sobre a Educação Integral recai sobre a ênfase antropocêntrica da “formação humana”, o que supõe ainda uma vontade soberana do humano sobre outros seres vivos com os quais coexistimos. Em Santa Cruz Cabrália nossos ancestrais afro-indígenas estão presentes nas forças da natureza que também nos constituem. Conviver com a biodiversidade da mata atlântica é o que move a nossa vontade política na construção de um Município Educador Sustentável, ainda que os padrões eurocêntricos e urbanos sejam hegemônicos na constituição das paisagens socioambientais daqui. Convivemos com povos que nos ensinam que a todas as expressões de vida das águas e das matas participam da Educação Integral que buscamos. A articulação do Direito à Educação com o Direito à Vida não pode ser reduzida à uma visão exclusivamente antropocêntrica da educação.

Ao longo dos últimos dez anos - tomando como documento de referência o Plano Municipal de Educação de 2015 - o discurso sobre a Educação Integral no nosso município ainda está muito colado à afirmação de que a nossa terra é “o berço do descobrimento”. Essa afirmação predominante nos documentos oficiais das políticas educacionais locais exclui os discursos de contestação “do descobrimento” que também circulam em nosso cotidiano. Tomar o “descobrimento” como questão histórica da nossa formação colonial em lugar de concebê-lo como afirmação identitária do território em que estamos torna-se, talvez, o nosso maior desafio de descolonização do currículo local.

Participar do debate contemporâneo sobre a Educação Integral exige posicionamentos situados sobre como lidamos com a organização, produção e distribuição do conhecimento em nossas escolas. Em outras palavras, como fazemos os nossos currículos locais. Os desafios da descolonização curricular no presente propõem: a contestação de ausências ancestrais em lugar da fixação dos marcos autorais; a criação coletiva em lugar da reprodução ostensiva; a preocupação socioambiental em lugar da pretensão antropocêntrica; o questionamento gerador onde predominam as afirmações etnocêntricas. Tais desafios não excluem outros tantos, ao mesmo tempo nos colocam corpo a corpo com as contradições que friccionam nossas forças transformadoras, ora no sentido de grandes avanços, ora no sentido de grandes retrocessos.  Fazendo Educação Integral podemos fazer dos currículos locais nossos mapas de descolonização da história do presente.

 


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