A arte de caminhar juntos

 

                                                                                            Foto de  Júlio Santos

 A minha saída do cargo de secretário municipal de Educação de Santa Cruz Cabrália se faz como exercício da coragem ancestral na arte de caminhar juntos. Uma virada político pedagógica na mudança de rotas sem perder o rumo da defesa do Direito à Educação para todas as pessoas.

Compreendo a política como tomada de posição social na história de que fazemos parte. A pedagogia - indissociável da política – compreendo-a como arte de fazer caminhos com outras pessoas. Coragem ancestral, para mim, é uma das muitas forças educadoras presentes nas nossas lutas por transformações sociais, assim como o amor, a esperança, a indignação, a rebeldia, a empatia e a solidariedade.

 Entre o posicionamento histórico – ato político – e a arte de caminhar juntos – ato pedagógico, muitas expressões da coragem ancestral nas lutas dos nossos antepassados pelo Direito à Educação me inspiram. Aprendi com Mestra Mayá, em sua Pedagogia da Reconquista, que toda escola acontece “com a gente andando de casa em casa”.

Fora da UFSB, a caminho da SEDUC, eu estava fazendo escola com outras pessoas, como mediador de uma política pedagógica orientada por reparações históricas, a serviço de um novo governo. Apresento essa breve jornada em cinco passos.

Trouxe para dentro do governo municipal a presença da nossa universidade. O primeiro passo para a aproximação de dois mundos próximos, mas também distantes. Nossa UFSB é fruto do esforço histórico de interiorização das Instituições Federais de Ensino no contexto brasileiro mais recente. Inscrever-se nos processos locais dos territórios em que se faz presente, constitui um dos mais importantes princípios do projeto político e pedagógico da nossa universidade. Estar como servidor público federal cedido para a composição do governo municipal define o lado ocupado na caminhada. Do público federal para o público municipal, primeiro passo da trajetória iniciada em novembro de 2024 - durante a transição governamental.

O segundo passo, aquele que me situou com as companheiras e companheiros da nova jornada, exigia o exercício do cuidado na reconstrução dos laços rompidos durante o processo eleitoral. Como colaborador do novo governo, tinha consciência do compromisso com a mudança na condução das políticas públicas locais com a garantia de manutenção das boas práticas políticas dos governos anteriores. A educação foi o tema central da disputa eleitoral no nosso município. Girlei e Xêpa foram eleitos pela esperança da renovação na política municipal, Iszael Fernandes, esteve próximo de ser eleito pelo grande trabalho realizado à frente da Secretaria de Educação. Foi uma eleição disputadíssima. Como eleitor que fez a defesa pública do voto a favor de Girlei e Xêpa, como educador sempre presente nas grandes ações da gestão de Iszael Fernandes, defendi (e defendo) mediações vinculantes entre os opostos, com efetiva (e producente) reconstrução dos laços de cooperação.

O terceiro passo, aquele que me fez avançar no processo de transição foi a reafirmação dos principais compromissos assumidos durante a campanha eleitoral, entre os quais, a assinatura da Carta Compromisso do Conselho Gestor da Área de Proteção Ambiental (APA) Santo Antônio. Documento que apresenta um conjunto de proposições para ampliar e qualificar a proteção socioambiental de todo o município. A carta foi apresentada em sessão pública na Câmara de Vereadores e assinada por todos os candidatos e candidatas ao executivo municipal a 19 de agosto de 2024. No dia 20 de dezembro do mesmo ano, quase ao final do processo de transição, tive a alegria de reafirmar o nosso compromisso com o documento, ao lado de Indara Mel Santana Mendes, companheira de trabalho que se tornou Secretária Municipal de Meio Ambiente. Desde então, as pastas da Educação e do Meio Ambiente iniciaram a construção de um importante vínculo de cooperação intersetorial na construção de políticas públicas do novo governo, rumo a um Município Educador Sustentável (MES).

O quarto passo, aquele que ajudou a me firmar na cena pública no início do novo governo, foi a posse das gestoras e dos gestores das escolas municipais no dia 08 de janeiro de 2025. As escolhas da data, do local, dos colaboradores e do ato de posse foram decisivas para a reafirmação da defesa da democracia e do compromisso com a reconstrução das relações políticas, a favor de toda a população do nosso município. Para chegar àquele dia mediei diálogos com grupos políticos e agentes públicos muito distintos: APLB Sindicato, Fórum Municipal de Gestores Escolares, Conselho Municipal de Educação, Fórum Municipal de Educação, Câmara de Vereadores, toda equipe da SEDUC e das outras secretarias do novo governo. No dia 08 de janeiro de 2025 celebrávamos a democracia brasileira nas escolas e com as escolas públicas do município, quando todo o Brasil rememorava os tristes episódios de ataque às instituições democráticas que levou à condenação recente do ex presidente Jair Bolsonaro. Àquele dia, pela primeira vez após as eleições de 2024, Girlei Lage e Iszael Fernandes discursaram lado a lado em reverência às novas gestoras e aos novos gestores eleitos democraticamente. Esse foi - de todos - o maior passo para que eu pudesse chegar ao mês de setembro, ao lado de inúmeras pessoas com quem caminhei junto, até aqui, na condição de secretário municipal de educação.

O quinto e último passo, aquele que mudou a direção dos meus rumos, teve início no mês de julho de 2025. Às vésperas do meu primeiro dia de recesso laboral – para recuperar o fôlego no meio da jornada – fui informalmente comunicado que o gabinete da Reitoria da UFSB encaminhara ofício datado de 07 de julho de 2025 ao gabinete do prefeito requerendo “reembolso referente à cessão do servidor Álamo Pimentel Gonçalves da Silva”. Em anexo ao ofício constavam os valores dos meus vencimentos como servidor público federal referentes ao período de 27 de dezembro de 2024 (data da publicação da minha cessão no Diário Oficial da União) a 30 de junho de 2025. Todo o conteúdo do documento expõe as alegações burocráticas da interpelação operada pelas instâncias superiores da UFSB. A informação chegou ao meu conhecimento por meio dos meus superiores no município. Até o presente momento nunca recebi qualquer informação ou consulta dos meus superiores na UFSB.

Desde então eu me vi diante de um constrangedor fato político: o acordo institucional que me conduziu ao primeiro passo anteriormente descrito foi quebrado pela minha instituição de origem. Ocorre que no ofício de cessão publicado no Diário Oficial da União de 27 de dezembro de 2024, a UFSB declara no artigo segundo que “o ônus pela remuneração ou salário é do cedente”. Houve uma mudança substantiva de entendimento do processo de cessão por parte da universidade entre a decisão de dezembro de 2024 e o requerimento de reembolso de julho de 2025. Em nenhum momento, ao longo daqueles quase sete meses iniciais, houve qualquer convite ao diálogo para explicitação das circunstâncias que alteraram as condições do acordo original. Ainda que ao longo desse período tenhamos aberto uma importante agenda de trabalho com a reitoria da UFSB sobre vários temas, em especial, um Programa de Titulação de Mestres e Mestras dos Saberes em Santa Cruz Cabrália.

A decisão fria, silenciosa (também silenciadora) e burocrática da minha instituição de origem abalou profundamente a firmeza dos passos que me trouxeram até aqui. Aceitei o convite para o cargo porque trazia junto no meu caminhar a UFSB, uma universidade pública, gratuita, socialmente referenciada que, no meu entendimento, deveria se posicionar como tal na construção de cooperações com outras instituições públicas. A cobrança pelo reembolso dos meus salários reduziu a cooperação a um negócio. A universidade coisificara a minha presença num lance único. Comecei a me sentir mercadoria. Desde então tenho convivido com o mórbido sentimento de ver a minha força produtiva ser reduzida a uma fatura de serviços prestados.

Antes de ser completamente asfixiado pelo severo processo coisificação a que fui submetido pela Universidade que ajudei a construir. Antes de morrer no cargo de secretário municipal de educação para uma ressuscitação forçada da minha carreira na UFSB. Antes mesmo de ser juridicamente interpelado ao meu retorno, resolvi sair do lugar. Volto à universidade para continuar caminhando junto com as educadoras e educadores do município que adotei como morada.

O quinto passo dessa jornada se faz pelo esforço de uma autodeterminação emancipatória: saio da Secretaria Municipal de Educação de Santa Cruz Cabrália para continuar contribuindo com a presença viva da universidade nas comunidades do seu entorno. Permaneço aqui, onde a força dos nossos povos originários nos dá lições de coragem ancestral, essa que confere consistência histórica no caminhar juntos, inspirados e inspiradas pelas lutas dos nossos antepassados.

 

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